sexta-feira, 22 de abril de 2011

Há ainda uns vinte fregueses, celibatários, modestos engenheiros, empregados de escritórios. Almoçam rapidamente em pensões familiares que chamam de suas cantinas e, como têm necessidade de um pouco de luxo, vêm aqui após a refeição, tomam um café e jogam pôquer; fazem um pouco de barulho, um barulho inconsistente que não me incomoda. Também eles, para existir, precisam estar reunidos.



Quanto a mim, vivo sozinho, inteiramente só. Nunca falo com ninguém; não recebo nada, não dou nada.

(...)

Atualmente já não penso mais por ninguém; nem sequer me preocupo em procurar palavras. Isso flui em mim, mais depressa ou mais devagar, não fixo nada, deixo correr. A maioria das vezes, por não se ligarem a palavras, meus pensamentos permanecem nebulosos. Desenham formas vagas e agradáveis, submergem: esqueço-os imediatamente".



"Na parede há um buraco branco, o espelho. É uma armadilha. Sei que vou cair nela. Aí está. A coisa cinzenta acaba de aparecer no espelho. Aproximo-me e olho para ela: já não posso ir-me.

É o reflexo do meu rosto. Muitas vezes, nesses dias perdidos, fico a contemplá-lo. Não entendo nada desse rosto. Os dos outros têm um sentido. O meu não. Sequer posso decidir se é bonito ou feio. Acho que é feio, porque me disseram. Mas isso não me impressiona. No fundo, até me choca que se possam atribuir a ele qualidades desse gênero, como se chamassem de bonito ou feio um pedaço de terra ou um bloco de rocha.

Ainda assim, há uma coisa que dá prazer ver, por cima das regiões flácidas das faces, por cima da testa: é a bela chama vermelha que doura meu crânio: são meus cabelos. Isso é agredável de olhar. É uma cor nítida pelo menos: gosto de ser ruivo. Isso está aí no espelho, faz-se ver, brilha. Ainda tenho sorte: se minha testa carregasse uma dessas cabeleiras sem brilho que não conseguem se decidir entre o castanho e o louro, meu rosto de perderia no vago, me deixaria tonto".


Acontece que o meu é assim. Exatamente assim: não se decide, vaga, e me deixa tonta. Eis minha expressão: meu rosto, minha identidade.

(...)




"Quando era pequeno , minha tia me dizia: 'Se você se olhar demais no espelho, vai ver nele um macaco'. Devo ter olhado ainda mais tempo: o que vejo está muito abaixo do macaco, na fronteira do mundo vegetal, no nível dos pólipos. não digo que não tenha vida, mas ... Sobretudo os olhos, assim de muito perto, são horríveis. São algo vítreo, mole, cego, margeado de vermelho; pareceriam escamas de peixe".

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Eu sinto um pouco de vergonha de postar isso aqui, mas a intenção desse blog, quando o criei, foi justamente juntar as partes de mim, o que é fantasia e também o que é mórbido, as duas coisas ou nenhuma delas, enfim, ser um retrato de mim, nos extremos mais improváveis e que parecem também, possivelmente, bem incompatíveis.

Eu sou assim, de verdade: extrema e ambivalente.

Podia resumir isso em mais um ou dois rótulos psiquiátricos, mas é inútil perante os objetivos que tenho para esta postagem, que é o de esclarecimento de quem eu sou para mim mesma, explicitar os meus desejos e manifestar, mesmo que sejam auto-destrutivos, mórbidos, e chocantes, talvez até repugnantes, pra muitas pessoas, pessoas que eu amo, e que me amam também.

Mas eu sou humana e estou bem cansadinha de ficar destacando sempre uma parte de mim conforme o público. Eu não sou um monte de personagens!!!!

Cansei de ter orkut fake, cansei de apresentar fragmentos de mim como se fossem o todo, cansei de ficar usando relações e pessoas pra fugir de quem eu sou às vezes, e cansei MUITO de tentar fugir de quem eu sou com uma persistência sobrehumana. CANSEI.

Então lá vai: vocês sabem que eu sofro de bulimia. É, eu sei que é nojento. Tenho episódios de anorexia também. Não, não tenho mais compulsões. Já tive sim, por comida, no caso mingau... rs

Eu, um ano e meio atrás, consumia por dia pelo menos um litro de leite e 1/4 de uma caixa de aveia. E tudo de uma vez, a única vez que eu comia no dia.

Ou seja, era compulsão seguido de restrição seguido de compulsão na manhã seguinte... Era um ciclo horrível, mas pelo menos eu não purgava, só fazia exercícios e tomava laxantes.

Tá, profissionais da saúde de plantão, eu sei que isso é purgação também então vou ser mais clara: eu não vomitava. Pelo menos não sempre.

Aí ano passado, mais ou menos nessa época do ano, tive compulsão por outra coisa: cortes.
Eu me machucava demais, cheguei a quase me fazer de bife, digamos. Peguei uma faca de cozinha comum e cortei meu braço direito como quem corta um bife mesmo. Tenho a marca até hj. Não sei bem por quê eu fiz isso, e os outros. O fato era que quando você começa a cortar dói, dói sim. E a dor vai aumentando conforme aumenta a profundidade do corte, pq vc vai cortando onde já está machucado, mas então chega um momento em que pára de doer. Simplesmente pára. Você vai cortando, e vendo o corte aumentar, sangue saindo, e não dói mais. O sangue escorre, vermelho, vivo, mas não dói mais. E quem vê tudo aqui, e as mãos que fazem... É como se não fossem suas. Eu ficava num estado tão mórbido que... Era como se não fosse eu ali. Era como se eu estivesse num canto escondido da minha mente, só observando, como quem assiste um filme. E o sentimento é uma coisa semelhante a ver o titanic afundando no filme, se comover com a cena pelo que ela é, e depois se comover mais, e chocar, quando lembra que aquilo realmente aconteceu, não foi registrado, mas aconteceu.

Eu revivia dores, e, de certa forma, controlava elas. Controlava através dos cortes e... dos jejuns. Quando a fome vinha, e eu não queria comer, e o mal estar aumentava, e aumentava, e eu não sabia da onde ele vinha, e como evitar, eu me cortava.

O fato é que agora eu não quero mais ver meu sangue, e me deixa triste ver minhas cicatrizes... É que parecia que eu queria mostrar que eu tenho marcas... Que em algum momento alguma coisa me machucou além do que eu podia suportar e daí eu... fiquei distante.

Estranho, não tinha visto desse jeito antes de estar escrevendo aqui... Bom, que bom. rs

A fase de cortes passou, ainda bem, e eu não fico triste por ter sido necessário essa fase acontecer pra que eu pudesse ir entendendo as coisas e me conhecendo e reconhecendo, para que fosse possível eu me acolher, como ando tentando nos últimos tempos.

O fato é que agora eu ando curtindo outro tipo de auto destrutividade, que inclui jejuns, e purgação de todos os tipos.
Vomitar tanto tem tido consequências bem desagradáveis: eu não consigo comer, mesmo que eu queira. Um volume de comida normal no meu estômago é insustentável. Consigo tomar sopa, e comer pão de forma no café da manhã, e mamão, e mingau, e só. Ah, salada também, e melancia, porque tem bastante água então digere rápido.

Agora eu começo a ver as mudanças no meu corpo, e gosto disso. Começo a ver minha caixa toráxica, o ilíaco, a saboneteira saltando mais, os ossinhos da coluna que eu sinto inclusive no encosto do banco do carro ou ônibus, é super divertido. Meus dedos estão mais finos também, no piano eles parecem mais ágeis, e eu estou adorando tudo isso. A merda é que me ameaçam de internação quando eu fico assim. Dane-se. Eu já tenho 5 faltas, se me ameaçarem de novo eu falto de novo e perco o tratamento com alta administrativa e não fico internada =D

Vai ser assim esse semestre e no próximo, caso eu ainda esteja no tratamento, o esquema vai ser igualzinho. NUNCA MAIS EU FICO NA ECAL. NUNCA MAIS.

Sai de lá obesa, verdade que estava me sentindo bem comigo mesma, mas eu estava gorda, e com o tempo foi ficando insustentável aquele peso... Aguentei o quanto pude, agora não aguento mais.

entãoooo

Desafio 43 rules!! =D

Semana que vem, lf 500cal ^-^
é tranquilo pra mim.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Meus desejos são incompatíveis.

Hoje eu acordei achando que o dia seria ótimo e muito produtivo. Acordei pensando nos exercícios que eu ia terminar, os da faculdade, no estágio que eu ia ver, na aula que eu ia assistir, nos slides que eu ia terminar de preparar, nas lições de piano que ia estudar... E na alimentação regrada que ia ter.

E eis me aqui.

Sem ter assistido a aula.
Sem ter respondido as questões da aula de amanhã
Com tontura, com dor no peito, com cólica, com dor de estômago, quase vomitando o que eu comi há mais de 3h atrás... e que se resume num miojo light, um pedaço de mamão e como eu estava com dor no peito e achei que podia ser deficiência de potássio (e eu tomei laxante, pra deixar a situação ainda mais interessante) comi uma banana, q eu odeio.

Ok, a dor no peito não passou, o volume de comida superou o que eu posso aguentar, o laxante começa a me deixar enjoada... mas o pior é a dor no peito. e eu não sei o que é isso. sei que dói até pra respirar.

não é possível que isso seja consequência das purgações e do meu imc pq eu não tô magra pra ter esse tipo de coisa. mas é fato, eu tô passando mal. e não consigo me concentrar pra responder as questões. sou uma inútil mesmo, nem a roupa toda eu passei. nem pra faculdade eu fui...


então o que eu quero?
nem sei mais... mas tudo dói... e eu sinto enjoo... e nojo. uma raiva de plano de fundo... e uma tristeza muito, muito forte mas que eu sufoco com todas as dores físicas. essas dores, desconfortos físicos, me fazem esquecer. mas mesmo assim eu choro. e não dá pra parar de chorar, mesmo que sem lágrimas.
eu choro nas teclas do note ou do piano, e choro quando vomito, choro quando tento esquecer de mim... porque eu fui nascer tão triste?

coração doendo... nada vai fazer passar.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Eu não sei mas parece que eu tô perdendo gradualmente a mim mesma. Sinto que meus olhos estão ficando vazios de novo, e meus reflexos logo serão lentos, e eu nem vou mais perceber a vida envolta.
Por que de novo?

Meus olhos vazios... E pensamentos secos... Isso tudo me sufoca.

Deve ser como uma tempestade de areia, mas é em mim, e o deserto se expande.
Eu só fico me perguntando quais são minhas fronteiras. Qual limite que me deixaria viva... E isso me assusta, me assusta tanto, porque são pensamentos mostruosos, fragmentados e... mortos.

Me sinto o próprio Dr. Frankstein. A diferença é não saber bem o que é que estava procurando criar. A semelhança é tentar criar um ser íntegro usando diversas partes de outros seres... Decomposição e composição. Criação e caos.

Eu sou minha própria experiência.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Hoje... eu quase posso tocar o silêncio

Almocei.
Ufa?
Sei lá.
Eu tinha pensado em ficar de nf, mas lembrei de uma coisa que disse pra uma garota com um problema igual ao meu: transtorno alimentar.
Ela estava se sentindo mal e por isso evitando comer, não queria, não sentia fome, dizia pelo menos que o mal estar era maior do que a fome podia ser. Então, eu disse a ela, eu que no período citado estava bem, que ela ficar sem comer não ia diminuir o mal estar que estava sentindo, pelo contrário.
Ela então comeu. Lembrei desse dia, e disse a mim mesma o que havia dito a ela meses atrás. Sentei na mesa, e depois de já ter chorado horrores, de me jogar no chão literalmente e ficar encolhida por um tempo que pareceu eterno e deixar uma poça de lágrimas no piso perto da mesa, eu vagueei pela casa, vagueei, andei, andei, carreguei vasos, mudei móveis de lugar no meu quarto, exclui minhas fotos de thinspo do computador, arrumei meus arquivos, incluindo os da pesquisa, tomei meus remédios... Bom, na verdade eu já tinha tomado a ritalina, mas como estava me sentindo mal, resolvi tomar mais uma fluoxetina, que só estava tomando de manhã. É, parece que fez uma diferença grande...
Ok, tomei a fluoxetina, e encontrei também uma cartela de lamotrigina, e como tinha lido em algum lugar que a lamotrigina potencializa os efeitos dos antidepressivos, tomei 50mg de lamitor. Esperei um pouco e então tomei a venflaxina, que era pra ter tomado só 20h da noite... e depois que senti que não estava mais tão desesperada e angustiada, nem me sentindo tão nojenta, eu peguei meu sudoku, lavei uma maçã e comi resolvendo sudoku. Terminei 3 joguinhos antes de terminar a maçã.
Estava tudo bem, exceto que eu ainda estava com fome o que é bem compreensível; estranho seria o contrário, visto que eu comi duas fatias de pão com creme de ricota e uma caneca de café antes das 7h da manhã. E já era 12h.
Tomei coragem e separei um pouco da abobrinha e coloquei pra esquentar no micro-ondas. Enquanto isso, fechei as janelas da casa com certa estupidez, e nem percebi o quanto estava me defendendo ao fazer isto, como se comer fosse algum tipo de crime estranho, profano, horrível, louco, um ato insano, completamente descontrolado e vergonhoso.
Peguei então meu sudoku  e fiquei resolvendo problemas enquanto comia duas fatias de pão com abobrinha refogada, enquanto contava as calorias mentalmente, e exagerando todas, claro.
A dúvida sobre vomitar ou não vomitar me atormentava. Acho que o que me ajudou a não vomitar foi o fato de eu ter chorado antes, chorado o suficiente pra me “limpar” de uma parte considerável dos meus sentimentos/sensações (eu chamo esses sentimentos de sensação de alma, porque são muito intensos, chegando mesmo a ser físicos, mas como tem origem na psique, designo assim, mesmo que eu saiba que psique não pode se resumir a alma, apesar de significar literalmente isso).
Mas enfim, essa dúvida ainda me atormenta, e é por isso que escrevo aqui, e é por isso que eu não abri as janelas da casa, e foi por isso que eu tomei 3 comprimidos de neosaldina e estou com uma garrafa de água gelada aqui do meu lado, e é por isso também que eu vou fazer uma série de no mínimo quinhentos abdominais quando sentir que a comida foi parcialmente digerida. E isso tudo porque eu preciso me controlar aqui, agora, pra não correr no banheiro e vomitar, porque quando vomito eu fico imprestável o resto do dia, e isso não pode acontecer hoje de jeito nenhum visto que tenho reunião do grupo de pesquisa as 17h na faculdade de educação.
Eu vou terminar esse relatório de dificuldades de alguém que tem transtorno alimentar, dificuldades e provações, pra depois talvez tocar piano, ou procurar coisas na internet, pra ser mais específica, procurar partituras na internet.
Tudo isso porque eu não posso vomitar.
Que seja... Mas tem outra coisa que preciso comentar: comer me dá sono.
Eu achei que fosse a bromoprida, não é não, é o simples fato de comer, por mais leve que seja a comida, e quando digo leve me refiro a coisas tão leves quanto abobrinha refogada, se não for ainda mais leve que isso, tipo suco de cenoura com laranja. O fato é que é só eu me alimentar direito pra me dar uma moleza terrível, mas é uma moleza gostosa... porque depois eu durmo, e daí acordo bem, e sem a sensação de estar digerindo ainda aquele monte de comida (esse “monte” é questionável. É que dentro da minha barriga, no meu estômago acostumado com jejum, qualquer coisa de volume resulta numa sensação de ter comido “um monte”).
Tem vezes que eu me entrego pra doença, pra esse transtorno chato, como se ele fosse uma escolha, e daí quando foge completamente de qualquer controle, e até possibilidade de controle, aí cai a ficha de que REALMENTE é um TRANSTORNO e... eu me assusto.
Tudo bem vai, foi necessário.
Não é de hoje que eu estou mal, mas tentei me esconder disso. Grande coisa! Me escondendo de uma coisa em outra que reflete tanto caos quanto essa, mas daí é um caos disfarçado.
Ok, estou tentando me reintegrar.
Estranho como em mim dorme uma certeza inconsciente de que eu não tenho nada pra dizer se transcender os meus diagnósticos. Isso é uma mentira. Eu tenho muito a dizer, na verdade, mas eu me escondi atrás de diagnósticos e fantasias porque não quis dizer, não queria sequer ver quem eu sou.
Eu passei a minha vida inteira julgando quem eu sou, logo depois que aprendi a pensar com palavras... foi só isso que eu fiz: me julgar. E a isso se seguiu o me punir, e então o querer sumir... Pra então a vontade mais que suicida de nunca ter existido.
Não sou uma pessoa ideal.
Não sou filha das estrelas.
Não sou um ET encarnado num corpo terrestre.
Não sou uma alma mais evoluída.
E nem sou alguém somente com problemas de visão, ou com tendências a esquizofrenia.
Não sou também uma anorexia mais que neurótica.
Não sou uma bulímica completamente descontrolada.
Não sou uma estudante hiperativa.
Não sou uma pesquisadora desorganizada.
Eu sou alguém que tem mesmo TDAH, independente do que qualquer um pense sobre isso, esse é um fato.
É também um fato que eu tive uma puta de uma merda de uma infância completamente fudida. E que por isso me senti tão ET e cresci assim.
A verdade, o fato mais CHATO, CRUEL mesmo, é que NÃO HÁ CULPADOS para tudo o que me aconteceu, porque não são as pessoas que executaram as ações, e sim as ações em si.
Ações cíclicas.
Quer ver?
Pedofilia.
Eu fui vítima (sim, vítima! Tenho problemas com essa palavra ainda por receio de ela me inspirar autopiedade e isso ser mais destrutivo do que tentar ignorar a própria vida) de abuso sexual.
Eu não sei desde quando. Mas eu sinto que não foi só da vez que eu me recordo, apesar de esta vez ter sido provavelmente a mais traumatizante, porque resultou em sonhos que me acompanharam a infância toda... um dia falo sobre eles.
O pior é que quanto mais eu analiso mais eu vejo coisas que não queria lembrar. Como fantasmas, memórias, coisas das quais eu nem queria saber, mas é necessário, é sim necessário porque é como um resgate de mim mesma. Eu preciso encarar o passado e digerir tudo isso pra poder me libertar dele, e poder viver plenamente. Sim, porque presa ao passado eu sou meia vida, meio morta, meio zumbi, e o que eu sinto podre em mim... é o que eu tenho de traumas e de medos. Medo do futuro. Do futuro ser igual ao passado. E o futuro é novo a cada segundo.
Mas eu não posso me proteger do passado.
Não posso evitar o que já aconteceu, por mais que eu seja persistente nisso.
Ser determinada em esquecer de si é algo que eu fui. Sou bem persistente, e também autodestrutiva, mas agora quero o meu espaço, assumir a minha força, e me movimentar no mundo sem estacar tanto por tanto medo e mágoa.
Assumir meu passado não significa ser determinista.
Perceber isso é uma vantagem.
Se eu não admito que fui vítima de vários tipos de abuso... invalido todo o meu esforço de recuperação, e me julgo muito duramente nas fases que tenho de... dor.
O pior da minha vida não foi meus pais terem se separado, meu vô ter morrido quando eu tinha 5 anos, a minha avó, mãe e tia viverem brigando, eu não ter amigos na escola e me isolar de todos desde bem cedo, e ser superdotada e completamente mal desenvolvida emocionalmente.
Ou ser hiperativa.
O pior da minha vida é o que eu não lembro.
Essa é a verdade.
O pior é o que eu ainda não sei, e estou lutando pra ver ou não ver... desde que entrei na adolescência.
Porque desde que entrei na adolescência luto contra minha sexualidade.
O pior da minha vida é eu ter aprendido em algum momento que... as pessoas se usam, embora isso não seja regra pra todas as situações.
E ter percebido que nunca se esta completamente seguro, nunca mesmo. Que as pessoas mudam muito rápido, e mesmo que num momento sejam carinhosas, no outro podem ser agressivas, e não é que elas viraram outra pessoa, ou um monstro, não. Simplesmente é a mesma pessoa.
É a mesma pessoa.
O meu pai sempre foi idiota. Irresponsável, verdade, mas ele também foi divertido. Brincava comigo e me dava lápis de cor, folhas de cartolina, bloquinhos de madeira, lego, e me levava nos parques pra brincar. Eu ia no Toronto e via os ‘filhotinhos de peixe’ de cima de uma ponte meio podre. Eu via toda aquela água e queria nadar, eu sempre adorei nadar.
Mas eu também tinha medo dele.
Eu só percebo esse medo quando lembro de como me sentia agoniada perto dele, uma coisa sutil e sempre presente, que me amargou. O quanto eu chorei porque não queria dormir na casa dele um dia que minha mãe ia sair... por exemplo...
Ele me contou histórias de quando era criança, e histórias sobre crianças, coisas que ele tinha visto.
Ele me contou que o meu vô trancava ele no banheiro e batia nele com a cinta.
E contou que um dia, brincando de ‘cavalgar’ num cavalete de madeira, ele enfiou a perna num prego...
E me contou que um dia passou na frente de uma escola e viu uma garota entrando no carro de uma pessoa que ele achou que era avô dela ou algo assim, e que quando  ela já estava dentro do carro, eles trocaram beijos. Beijo de língua mesmo.  E o que eu achava disso.
Hoje eu vejo, analiso tudo isso que ele disse, e ao mesmo tempo que eu percebo uma ameaça vinda dele, percebo um pedido de socorro, ou sei lá, algum tipo de expressão desesperada.
Hoje eu sei que ele abusou de mim sexualmente porque ele sofreu abusos e não soube como lidar com isso.
Ele passou a batata quente pra própria filha.
Vai saber se meu vô paterno não fez o mesmo?
E quem teria feito com ele?!
Não são as pessoas. São as ações, os ciclos. Medo, indiferença, culpa, só formam o meio pelo qual essas ações se propagam, com personagens diferentes.
Eu sou forte e madura pra minha idade, embora pareça extremamente infantil e frágil.
Digamos que tive dificuldades adicionais no percurso da minha vida, um pouco mais de 20 anos atualmente. Essas dificuldades, pra serem superadas, pra que eu me desenvolvesse, foram sendo tratadas com diferentes estratégias dependendo da fase em que me encontrava. Vai ver foi isso mesmo que me ajudou: mudar estratégias. Não insistir, apostar num ideal qualquer ou sei lá.
Eu sou Priscilla, e não quero que este nome me defina, “Aquela que pertence ao Passado”, não. Eu quero significar esse nome. Priscilla significando eu mesma, não simplesmente um “nome de princesa” (nesse caso Talia seria mais adequado hauahauahauahaua brinks) ou esse significado nostálgico aí “aquela que pertence ao passado”.
E meu nome, que eu vou significar com a minha identidade. Identidade que eu estou reintegrando.
Toda aquela lista lá encima que eu disse que não sou eu são sim as minhas derivadas. Algumas são derivadas mesmo, outras são a constante da derivada, aiai... não lembro os outros elementos, faz 3 anos que eu não tenho aula de cálculo! Rs
É isso então.
Agora eu escrevo não pra fugir de mim, tentar ser outra coisa, ou sei lá, e sim pra me reintegrar.
Fantasia e morbidez.
Assim.
Dellirium
=)